Sim, vez por outra eu desisto, abandono livros. Há várias razões para isso, mas a principal deveria dizer que é preguiça, mas serei condescendente com o velho leitor em que me transformei e prefiro declarar que o livro não me segurou, não manteve a expectativa que alimentei quanto a ele, livro, ou quanto ao escritor.
Há escritores dos quais desisti inteiramente, mas tenho alguns livros deles que gostei em algum momento da minha longa carreira de Leitor. Não me cansa nunca o verso de Borges:
Que outros se jactem das páginas que escreveram;
a mim me orgulham as que li.
Quando lia em bibliotecas públicas, por conta do orçamento restrito onde nada sobrava para adquirir meus próprios exemplares, era bem seletivo. Li Borges, àquela época, Bioy Casares e alguns clássicos: Milton, Cervantes, Homero. Não que estes estejam na coluna dos que me cansaram. Não. Apenas estão lá no fundo da memória como uma coisinha quentinha e desnecessária nesta quadra da vida. Eça, idem. Herculano, não. Releio Herculano me divertindo e Ramalho Ortigão, idem.
Teria me cansado de Chesterton? de Ortega Y Gasset?
A resposta é um redondo não. Cansei-me das resenhas que deles fazem alguns jovens loucos por quinze segundos de fama nas mídias sociais.
Ah, então, o sr. tem um programa de leitura - é isso?
Sim, tenho o Kindle, mas a preferência é mesmo o meio em celulose. O livrão antigo que em breve será objeto museológico. Descobri com um amigo um app para “ler” livros, em arquivo pdf, além de ter o Audible que “lê pra gente”, preferencialmente livros do acervo da Amazon, mas não tenho um “plano” prévio de leitura, se é isso que você queria saber. Observo que o papa João Paulo I (o papa sorriso) previu essa máquina de ler, pois, afinal, dizia ele: “se o homem inventou uma máquina de escrever, há de inventar uma para ler…”
Cansam-me também alguns escritores jovens e que fazem muito sucesso. Tenho por eles uma espécie de atração doentia, como o imã e a limalha. Às vezes retorno a eles, mas com um sabre ao lado para o caso de necessidade. Quando atraído ou repelido…just in case.
Borges tornou-se para mim o símbolo do “leitor ideal”. Em “Elogio da sombra”, há um poema que é síntese dessa paixão pela leitura e pelos livros – “Um leitor” - já escrevi sobre isso.
Lembro-me de ter visto um filme há alguns anos em que um foragido da justiça aparece numa pequena cidade, faz amizade com um garoto e o motiva a ler. O conselho era bem simples: comece o livro escolhido com entusiasmo e se ele não te prender a atenção até a página 50 (digamos 50, porque ele deve ter usado um número bem menor!), abandone-o. Simplesmente, ponha de lado e escolha outro. Há livros demais no mundo. Ouça OCohéllet ben David, o mestre, filho de Davi, rei de Jerusalém adverte no Eclesiastes (12:11-12):
"As palavras dos sábios são como pregos bem pregados; são como varas pontiagudas que os pastores usam para guiar as ovelhas. Eis que estas palavras foram concedidas por Deus: o Único Pastor de todos nós.
"Atentai, pois, filho meu, a mais este conselho: Não há limite para se produzir livros e estudar demasiado fazem o corpo todo ficar exausto."
Não abandonei muitos livros ultimamente. Dos romances japoneses que vêm sendo meu foco agora, entremeados com leituras de história e teologia, nenhum foi deixado de lado. Murakami, principalmente. Leio-o com aquela certeza de que, se um romance não é mais que uma série de “episódios”, Murakami tem maestria em juntá-los, quase sempre num ritmo que prende este leitor.
Desisti de Joyce
Hoje, acho melhor ler sobre ele do que lê-lo, mas como se sabe “Joyce sempre escapa às classificações”. Não abandonei “O retrato do artista quando jovem” nem mesmo quando o li mais velho, mas não avancei com o “Finnegans Wake”. Li e reli o “Ulisses”, amando e odiando. O “Giacomo Joyce” não é nada desprezível, “Exilados” é peça legível e reveladora — mas nada admirável ao ponto da santificação, como os teóricos dizem de todo o resto. Apenas não tenho mais apetite pra relê-lo. Acho ótimo o entusiasmo do jovem analista Caetano Galindo (em Sim, eu digo sim, p.ex.) ou de Alípio Correia de Franca Neto (tradutor e analista do “gênio irlandês”).
Ah, e desisti de Musil, lá pelos 2/3 de “O homem sem qualidades”, embora tenha gostado muito e ficado preso até à última página de “O jovem Törless”. Quem sabe um dia retorne às aventuras daquele catatau.
Falava com uma amiga nonagenária sobre este evento e ela me disse, taxativa: “Não tenho mais tempo de aprender a gostar dele [Musil]”.
Quando conheci o escritor gaúcho Dyonelio Machado, tinha ele 82 anos e estava aprendendo Grego. Ele me dedicou seu romance “Os ratos” assim.
Não dá pra desistir de um escritor assim, apesar de o quão se possa estar contrariado com sua pessoa, criticamente falando… Tampouco desistirei, por ora, da poetisa polonesa Wisława Szymborska, por ter ela escrito um poema em homenagem a Lênin, e por, aparentemente, ter-se encantado e em seguida desencantado com o comunismo (ou o socialismo soviético). Desisto, às vezes, mas não facilmente.