Não é porque o sujeito tenha lido meia dúzia de autores de um determinado país que possa ficar “pontuando” sobre esta como um especialista. Não ficaria bem imaginar um gringo ditando regras sobre a literatura feita no Brasil por ter lido uns dois ou três Machados e um Mário de Andrade. Opinião, no entanto, qualquer leitor pode ter, impressões, então, são de livre trânsito.
É a trilha a ser seguida nesta newsletter. O autor só deseja manifestar seu agradável encontro com uma literatura que lhe ficou desconhecida nestes sessenta e seis anos de uma vida profícua e deixar algumas impressões sobre uma viagem de sete dias a São Paulo.
Foi por conta de um compromisso com um neto, que o Japão me surgiu literariamente. E vem fazendo um bom papel. Os meus seis leitores sabem da minha planejada viagem ao Nihon, ou para usar o lugar-comum, à terra do sol nascente. É o poder de convencimento de netos.
E, desde então, eis-me a tentar conhecer o país a ser visitado através da literatura. Vários amigos (virtuais) me acolheram com sugestões de leitura e os livros foram se acumulando e rapidamente sendo lidos. Nenhum, além de “Silêncio”, de Shusaku Endō (1923-1996) significou uma corrida de obstáculos.
Aproveito a semana que passei em São Paulo para revisitar o bairro da colônia japonesa naquela capital. E para comer e beber bem, em boa companhia. Uma dessas o historiador e tradutor Maurício G. Righi, de quem me ocuparei mais adiante.
BOTCHAN
Da dificuldade que se interpôs entre o leitor e o livro do Endō, nutro pequena esperança de que ao ver o filme de Martin Scorsese baseado no livro eu consiga avançar naquele drama do japonês-católico, clássico de Endō.
A denúncia da violência contra a minoria católica encetada pelo xógum Tokugawa, no século XVII, ainda aguarda conclusão, porque por ora dou-me o direito de divertir-me com Murakami, Tanizaki e Soseki. Faço aqui um mea culpa com você, benévolo leitor católico.
Foi com “Botchan” (Soseki) que me envolvi totalmente nesta semana passada em São Paulo. Ele escrevia seus textos como Natsume Soseki (夏目 漱石 — mas foi registrado como Natsume Kinnosuke (夏目金之助 Natsume Kin'nosuke) (9 de fevereiro de 1867 - 9 de dezembro de 1916). Ele ficou órfão de mãe (aos 14 anos) e foi rejeitado pelo pai.
Voltemos à história do jovem mestre (Botchan, em japonês), que tem uma vocação única para arrumar encrenca, ou no dizer polido de seu editor no Brasil, “habilidade social não é o forte do protagonista”, que vive criando enormes dificuldades para si mesmo no convívio em uma cidade do interior, onde encontra seu primeiro emprego como professor de matemática.
Hà quem compare o narrador anônimo de “Botchun” ao Holden Caulfield de J. D. Salinger em “O apanhador no campo de centeio”. Creio que é uma facilidade de não entendermos a cultura oriental, mas não é este o caso de aqui inventar paralelismos.
Este menino de Tóquio tem vocação para a travessura e o jovem adulto apenas troca esta pelo não ajustamento social. Depois de se formar em curso de Física para professores, é enviado para uma cidade ao oeste da ilha — Shikoku, “uma terra de bárbaros”, como ele próprio designa.
Os percalços do jovem mestre começam com os colegas professores, que não conhecemos senão pelos apelidos: “O diretor é Texugo, o vice-diretor é Camisa Vermelha, o professor de inglês é Abóbora Verde; o de Matemática, Porco-Espinho e o de desenho é o Fanfarrão” (p.32;3).
A relação com os alunos é tumultuada e demonstra a insegurança do protagonista, mas também sua criatividade para criar e se livrar das encrencas.
As pensões em que se hospeda também tornam-se palcos de mal-entendidos e pequenas desavenças, que sempre levam-nos a apreciar a mordaz ironia com que Botchan encara os fatos. Ele é o típico personagem para quem parece não valer a famosa frase de Ortega Y Gasset por inteiro:
“Eu sou eu e minha circunstância, e se não salvo a ela não salvo a mim”.
Se o caminho que Ortega nos aponta para a “salvação” é buscar o sentido do que nos rodeia, Botchan o evita a todo custo. Ele está sempre em ponto de fuga, embora demonstre alguma consciência, à medida em que vai refletindo sobre cada um dos imbroglios que se lhe são oferecidos ao longo das 176 páginas da história.
Ciente de que “um homem confiável deve ter a retidão de um bambu que não se verga”, o jovem professor expõe os esplendores e vilanias dos embates com homens de caráter (e os nem tanto); em reflexões que cruzam a narrativa do início ao fim.
Seria “spoiler” mostrar aos meus seis leitores a decisão final do jovem professor em relação a emprego, local de moradia e destino afetivo —, mas por ora digamos que abandonado por pai e distante do irmão, sobra-lhe muito pouco coisa na distante Shikoku. Talvez mereça posto melhor alhures. São novas circunstâncias, quiçá Botchan se salve….
Para o embate com os homens de caráter e os nem tanto, ele cria uma espécie de dicionário de termos pejorativos:
Almofadinhas, impostores, embusteiros, hipócritas, charlatões, quadrúpedes, sicofantas, poltrões ou, simplesmente, “sujeitos semelhantes a cachorros que ladram”.
O leitor atento das mídias sociais encontrará estes tipos e também os sacripantas e os pilantras, muito comuns quando se aproximam de medalhões do meio digital — estes também gente com devemos manter atitude de distanciamento para a nossa própria saúde mental.
Os meios digitais, tais como os jornais à época de composição da narrativa parecem agir à maneira do que descreve o narrador, pág. 160, reportando uma briga em que o jovem professor e seu colega (Porco-Espinho) interviram para apaziguar e foram presos como arruaceiros:
Jornais vomitam mentiras impunemente. Não existe nada neste mundo tão arrogante quanto um periódico. O jornal publicara apenas a sua versão dos fatos, não a minha…
Com o bacharel em Letras — ou o Camisa Vermelha, a ironia levada à exaustão não surte o efeito desejado, pois ele é eloquente demais para a pobre argumentação em público do nosso anti-herói (Botchan), mas este não o perdoa, concluindo que “não há nada mais indigno de confiança que o ser humano” e ao perder mais uma discussão para o pedante Camisa Vermelha se auto-defende com esta:
“Uma pessoa sagaz na argumentação não é necessariamente uma boa pessoa. Tampouco o derrotado é forçosamente mau.”
Estas são algumas cenas do divertido “Botchan”, de Natsume Soseki, cuja leitura recomendo com entusiasmo.
Bem, também fui ao bairro da Liberdade, onde não comi bolinhos de arroz e tempurá, mas adquiri alguns novos recursos para o estudo do Japonês, porém, iisso fica pra depois porque esta edição vai se alongando por demais. Concordo com Botchan ao escrever para Kiyo: escrever cartas é complicado demais.
“Como é complicado redigir…. é mais árduo do que jejuar por três dias” (p.147)
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Entusiasmo e alegria tivemos, minha mulher e eu, ao encontrar para um repasto o historiador e tradutor (escritor, enfim! e de grande talento) Maurício G. Righi, no recém inaugurado Boteco do Jacquin. Eu e minha mulher que só o conhecíamos pelas obras, saímos mais admirados das qualidades deste Girardiano de escol, deixando firmado convite (ainda sem data marcada, por conta das restrições ainda existentes) para que ele venha a Goiânia, falar sobre seus livros, principalmente este.