Eu tenho um confrade na Academia que sempre quis ser escritor. É o que me diz. Sonho que perseguiu na prática, desde que aprendeu a ler, aos 8 anos, por obra e graça de um vendedor.
Sim, grito aqui um Bravo! em alto e bom som ao vendedor que ajudou a “gerar” um escritor. Fico honrado por ter exercido esta profissão que me rendeu o atual conforto na velhice (e se opôs bravamente a que não me tornasse jamais um escritor), por tais frutos memoráveis.
Todos devem saber que o goiano Edival Lourenço, ganhador de um troféu Jabuti (e um Jaburu), é filho de pai e mãe analfabetos, e passou boa parte da infância na roça.
É habilidoso no uso da linguagem oral do interior de Goiás e abusa disso em seus textos literários, mas continua grato à primeira vez em que bateu os olhos nos textos de um Almanaque do Biotônico Fontoura, trazido por um diligente vendedor, que leu para ele as histórias do folheto na longínqua Iporá.
Não tive a mesma sorte. Não passou pela minha vida um vendedor-mago do Biotônico Fontoura. Retomo consciência disso ao ler um manual elaborado por um importante escritor inglês no início do século XX. Nunca quis ser escritor. Talvez, leitor. Caí no meio literário e sei que só não sofrerei um impeachment porque a Academia Goiana convencionou designar inamovível a titularidade de seus membros.
Quando o escritor inglês Enoch Arnold Bennett escreveu em 1903 o livro que me caiu às mãos esta semana, o seu hoje famoso “Como se tornar um escritor: um guia prático” os ingleses já registravam a publicação de mais de 1700 novos livros de ficção e quase 300 de crítica e belas-artes por ano.
Nasci em 1955 e, depois de andanças em casas de tios e tias em Garanhuns e na própria Anápolis, eu, este Oliver Twist do cerrado, fui criado na “Manchester goiana” — então chamada de gloriosa Sant´Anna das Antas, onde vivi num orfanato, que era um dos poucos a manter uma biblioteca, entre as mais de oitenta e uma registradas pelo IBGE, naquele ano, em Goyaz (é, leitor, ainda se grafava assim, comme il faut, o belo nome da nossa província).
Dos mais de um milhão de livros doados às bibliotecas, ainda segundo o IBGE, no ano em que nasci, alguns devem ter ido parar lá na biblioteca do Abrigo em que fui criado, além, é claro da biblioteca do colégio que tinha o reforço decisivo das doações de livros e outros recursos por missionários evangélicos norte-americanos da missão United Brothers. Sou grato por ter lido tantos bons (e maus) livros lá — o que não me ajudou, jamais, a me tornar um escritor.
Isso não foi (e não deve ser suficiente) pra fazer de você, leitor dessa Newsletter um escritor. É preciso algo mais. Talvez coragem, ter punch. Uns dizem resiliência e um pouco de sorte (dizer que teve estrela, seria tergiversar). Creio que “ter punch” é expressão está fora de moda, mas ainda é o golpe certo para embalar uma luta, uma carreira (de escritor). Não sei. Não o sou.
Eu queria ser leitor. Leio por prazer. Nunca ganhei dinheiro com isso nem com o fato de ter aprendido francês muito cedo e inglês mais tarde. Tive um bom amigo francês cujo ofício era de Leitor.
Creio que essa era, definitivamente, a profissão que eu gostaria de ter exercido. Bennett tem dúvidas sobre o prazer desse ofício. O sujeito se instalava numa editora e era pago pra ler, mas os volumes datilografados e amarrados (sim à época não se grampeavam originais) eram lidos com um misto de desprezo e má-vontade.
O capítulo “O lado comercial dos livros” do livro do Bennett deu-me boas razões para pensar que o melhor teria sido empregar-me na Fundação Calouste Gulbenkian com uma bolsa em Escudos (ou Euros, agora que sou sessentão) e ficar flanando por Lisboa boa parte do dia, entre um Porto e outro. Poderia ter sido eu mesmo:
“Leitores são humanos, e todos têm seus entusiasmos e loucuras. Às vezes acontece de um manuscrito de verdadeiro mérito ofender a idiossincrasia de um crítico, que imediatamente o condena”.
Porém, penso, não queria ser leitor de originais de Marcel Proust ou de Carlos Drummond de Andrade, nem de César Miranda ou Gustavo Nogy. Prefiro que minhas idiossincrasias se paguem por outras formas.
Bem, então, mesmo leitor eu ficaria numa posição confortável de trás-os-muros… Carreira não consolidada, pois.
O iniciante que decida hoje enviar originais para editoras no Brasil deve enfrentar as mesmas dificuldades e desventuras que o da época de Bennett e parece-me “extremamente importante que o principiante tímido saiba com precisão a natureza dessas aventuras”, que não se ofenda com um ou dois Nãos nem com os longos silêncios, que se seguem ao envio de originais, provenientes de editores e seus “leitores” pagos para a tarefa de escrutínio.
Bem, iniciei prometendo-lhe, benévolo leitor, como não se tornar um escritor. E de novo, como na vida, vejo-me metido numa enrascada e se me aventuro a deixar-me emboscar mais, recomendar-lhe-ia folhear esse livro do Bennett e termino como comecei, sugerindo que leia alguma coisa de um conterrâneo que, como o outro, se fez escritor — André De Leones as aventuras dele podem lhe ser úteis.
Prefiro desaparecer completamente, mas ainda me atraem as chamadas no Twitter como esta, para pessoas pacientes que não se contentam com os pouco mais de cem caracteres. Há quem leia.
Lendo um ou mais livros ao mesmo tempo, desde a infância em Anápolis, me vejo hoje no fastio de enfrentar romances-catatau. Quando um amigo mais experiente me disse ter desistido de Musil (O homem sem qualidades) ali pela página 400 da edição brasileira (que é horrível), fiquei bem decepcionado com o leitor impaciente que houvera sido. Na edição portuguesa, mais cuidada e tal (em três volumes, que adquiri depois de doar a brasileira) vejo-me estacionado e sem horizontes na página 120 do vol. III. Não há medida de “sinceridade, força e graça” (recomendadas por Bennett ao escritor) que me façam avançar.
O mesmo se dá com um romance de uma premiada escritora baiana…Ufa!
Seriam meus olhos ou meus sentidos? O irlandês James Joyce em outro contexto:
“Olhos meus falham na treva, falham os olhos,
Olhos meus falham na treva, amor”.
“De novo. E só. Escuro amor, escuro ansiar. E só.
“Escuridão”.